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Romance e pescaria
Clarissa Diniz

Diz-se que o vidro surgiu de um acidente no manejo do barro. O culpado pela falha mentiu escondendo seu erro e, por isso, consagrou-se inventor.

                                                 

Sempre gostou de romances, e nos últimos tempos tem aprendido – tantas vezes sozinha... – o prazer de romancear. Seus sentidos têm-se apurado num cotidiano de portas e poeira, e de tudo tem extraído linhas capazes de tecer histórias. De sua realidade tem absorvido singelas potências inventivas: mentir lhe tem sido um alívio diário.
Sua memória agora enriquece sua própria identidade. Os álbuns de seus pais hoje estão distantes de seu passado, ao qual se agregam tons vermelhos antes não lembrados. À sua biografia acrescenta-se um romance e muitas mentiras – a mãe, que outrora engordara, amanhã vestirá seus trajes matrimoniais e os levará à igreja-nas-fotografias-jamais-registrada a fim de iniciar um casamento eterno.
Tem dedicado ao seu romance horas de autobiografia, e por isso às vezes se sente perdida entre sentimentos que já não sabe se lhe foram, anteriormente, originais. Os filhos todos do mundo agora parecem ter-lhe saído do ventre maternalmente obeso, e o peso da prole a toma o prazer da solidão. Evaporam-se as portas cotidianas enquanto excedem poeiras advindas de toda a Olinda.
Para cada verdade ela tem inventado outras sortes. Em suas narrativas, tem sobreposto – por culpa de velhas intrigas celestiais –, o destino à sorte! Todo traço amplia-se em sombra; e as sombras desviam a nitidez de sua memória. Por hora confusa, tem-se percebido pesadelando momentos em que afoga seu romance até que lhe borre toda a tinta. Quando acorda, estuda incessantemente a gramática de nossa língua, confiante que nela encontrará o eixo que a manterá a salvo dos perigos da liberdade.


Sabe-se que o vidro é reciclável ao infinito. Mesmo quando desgastada e quebradiça, sua matéria se presta à remodelagem. Infinitamente.

Ainda me lembro das aulas da terceira série onde a professora deixava bastante clara a diferença entre história e estória. À primeira ela relacionava a noção de verdade, e, à segunda, a de invenção. Temia minha professora que crescêssemos sem a capacidade de distinguir o real do imaginário, colocando, portanto, nossas certezas identitárias em situações de crise.
O mundo que construímos, contudo, pouco nos propicia essa clara distinção. Nossa sociedade crescentemente se pluraliza, e nesse processo multiplicam-se as opções de verdade – sempre várias e, por vezes, paradoxais. A circunstância mundana parece exigir, portanto, um outro tipo de potencial que não apenas a capacidade de distinguir a história das estórias. É-nos demandada a virtude de construir uma identidade entre realidades e invenções.
Luciana Padilha repleta-se de tal qualidade equilibrista ao criar narrativas simultaneamente reais e ficcionais. Sabe ela que mesmo a mentira torna-se real quando passa a ser contada, e por isso mistura imagens de sua história com imagens raptadas de vidas alheias. Ademais, não se contenta com um só ponto de vista e, à mesma imagem, sobrepõe vários duplos seus, alimentando outras dimensões de uma mesma cena.
Ao mesclar vivências pessoais – casamento, profissão, família – com experiências alheias, a artista universaliza suas narrativas bem como, inversamente, intimiza imagens e sensações arquetípicas. Assim, Luciana encontra, por um ou mais momentos, um modo de ser, simultaneamente, ela e outros. Como num ritual antropofágico, a artista incorpora identidades diversas no dispendioso anseio de expandir sua presença no mundo. E, ao se expandir, dá continuidade ao infinito processo de construção de seu eu e permite entrever o desejo de tornar-se maternalmente obesa.

Texto do Projeto Relâmpago do Branco do Olho para exposição Tudo é invenção por Clarissa Diniz | 2007

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